Um dia desses, já tem um tempinho, estava desenvolvendo, como parte de uma equipe de psicólogos, um trabalho de atendimento psicológico em um projeto de inclusão social de jovens de algumas comunidades da Zona Oeste através do ensino de música, quando fui abordado por uma mãe muito preocupada com sua filha, que estava na faixa dos sete anos. Essa mãe, visivelmente preocupada, dispara a seguinte frase/pergunta na minha direção: “Doutor, estou muito preocupada com a minha filha porque ela não se interessa por brinquedos de menina, não gosta de ficar brincando de boneca e prefere as brincadeiras dos meninos, não desgruda de uma amiguinha dela e as duas estão sempre juntas para cima e para baixo… Será que isso quer dizer que minha filha pode virar homossexual?”
Respondi a esta mãe, depois de uma pequena pausa para me recuperar da surpresa pela abordagem inusitada e repentina, de que nem esta era uma questão tão grave como ela estava imaginando e nem era, em nenhum momento, um problema. “Minha senhora, em primeiro lugar, o fato de sua filha não gostar de brincar de boneca ou de outro brinquedo dito de “menina” e preferir brincar os meninos não quer dizer absolutamente nada sobre qualquer futura escolha de identidade de gênero e de preferência por um tipo específico de escolha afetiva qualquer que venha a ser. Em segundo lugar, considerando a possibilidade de que ela venha a ter sua preferência afetiva voltada para alguém do mesmo sexo que ela, onde estaria o problema desta escolha, desde que seja uma escolha onde ela possa ser amada, acolhida e feliz?”
A mãe, depois de uma certa pausa para processar minha resposta, certamente muito diferente do que ela queria ouvir, me respondeu pensativa: “É, doutor, não tem problema se a escolha dela fizer ela feliz… Mas ainda é muito cedo para ela estar pensando em qualquer coisa desse tipo, né? Eu é que sou meio ansiosa e fico botando o carro na frente dos bois e imaginando coisas…”, terminou o raciocínio com uma certa nota de resignação. Mesmo sabendo que, com certeza, esta mãe ainda vai se debater muito com sua carga de preconceitos herdados de uma educação conservadora, machista e heteronormativa, ainda existente em nossa sociedade, a partir daquele momento, ela também passaria a carregar algumas sementes de questionamento sobre estes “pré-conceitos”, que, espero, venham a germinar com o tempo.
Estou contando este breve episódio porque decidi escrever a respeito de algo que se tornou bastante comum entre os adolescentes, a experimentação das muitas possibilidades de escolha afetiva e sexual, sem que isso tenha que ser necessariamente rotulado e enquadrado em uma caixinha, como uma escolha definitiva e irrevogável feita por aquele jovem. Uma aparente contradição de nossa sociedade pós-moderna tão liberal, mas que exige que as pessoas tenham que se enquadrar em certas caixinhas, quando a lógica do desejo do inconsciente humano não obedece a estas regras e lógicas do capitalismo pós-moderno que “aceita” tudo e todos, desde que todos nos enquadremos em perfis de consumo já pré-determinados.
Assim, essa experimentação que vemos acontecer entre os adolescentes não traz necessariamente escolhas ou definições claras, mas fala da exploração das nossas possibilidades afetivas simplesmente como humanos, da mesma forma que nos lembra de nossas múltiplas escolhas possíveis nas nossas relações afetivo-sexuais.
Pois como já afirmou o pai da psicanálise, Sigmund Freud, toda sexualidade humana pode ser considerada como pervertida de seu objetivo biológico que é o da reprodução, já que a sexualidade humana passa a ter como alvo o prazer, e os humanos, quando nascem, não têm consciência de gênero, algo só aprendido à medida que o ser humano é mergulhado na civilização e na cultura. Ou seja, ninguém nasce hétero, homo ou qualquer rótulo existente no que se refere à sexualidade de cada um de nós. Essas escolhas, na verdade, serão construídas, como as escolhas possíveis e mais adequadas para a vida de cada um.