Livro da historiadora Luciene Carris resgata passado operário do bairro e conta histórias inéditas, como a de um compositor de marchinhas de carnaval famosas.
O que poucas pessoas sabem é que foi no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, a moradia de um compositor de marchinhas que ficaram muito conhecidas e atravessam décadas animando os carnavais. Trata-se de Haroldo Lobo, operário durante alguns anos na fábrica de tecidos América Fabril, no Horto. Ele compôs mais de 600 músicas como “Alá-lá-ô” e “Índio quer apito” e criou, no início da década de 1940, o Bloco da Bicharada que desfilou pelo bairro por mais de dez anos. Hoje em dia lembramos dos blocos Suvaco do Cristo, do Vagalume e de outros, mas a vocação carnavalesca do bairro é antiga.
Essas e outras curiosidades estão no livro “Histórias do Jardim Botânico: Um Recanto Proletário na Zona Sul Carioca”. A obra é resultado de vasta pesquisa da historiadora Luciene Carris que relembra o passado operário do bairro, passando por vieses urbanos, sociais e políticos.
Em meio às descobertas, uma em especial foi recebida com muito espanto: “Adoro carnaval e blocos de rua e descobrir que Haroldo Lobo morou aqui e foi operário da fábrica foi fascinante”, diz Luciene. A historiadora conta que nascido em 1910, no seio de uma família de músicos, Haroldo Lobo realizou seus primeiros estudos musicais no clube recreativo operário da fábrica Carioca, e teve a sua primeira composição consagrada com o samba Juro, escrita com o seu parceiro de várias músicas, Milton de Oliveira, premiada no carnaval de 1937.
Ele compôs mais de 600 composições, muitas delas marchinhas e idealizou o Bloco da Bicharada”, comenta, citando “Alá-lá-ô” e “Índio quer apito”entre alguns dos trabalhos do artista, autor também de “Tristeza”, sucesso conhecido principalmente na voz de Jair Rodrigues e Elis Regina, uma composição que foi tocada no violão de Baden Powell fora do Brasil, trazendo uma fama internacional. “Fiquei muito surpresa, mas mais surpresa ainda por essa figura ser desconhecida no bairro, a gente sabe que o Tom Jobim morou na Peri e Sarah Vilela, mas o Haroldo Lobo não virou nome de rua, estátua, nada… É uma figura importante do bairro!” diz Luciene.
Por meio de uma escrita leve, o livro resgata o período compreendido entre 1884, quando a Fábrica de Tecidos Carioca foi inaugurada na Rua Pacheco Leão, e 1962, quando a Rede Globo se instalou no endereço. Dessa maneira, o bairro é retratado como um subúrbio em plena Zona Sul, já que era distante do Centro e com moradores majoritariamente de baixo poder aquisitivo, realidade bastante diferente dos dias atuais
“No Centro, as vilas operárias foram para o chão. Temos cortiços, estalagens, mas vilas operárias, apenas uma ou outra. Aqui, temos uma lindíssima, tombada, que está virando galerias de arte e restaurantes. As pessoas vão comer no Jojô e não sabem desse passado. O tombamento, entretanto, provocou gentrificação. As pessoas estão se mudando porque ficou caro. Virou bairro de elite”, reconhece, citando que muitos lembram apenas da ideia aristocrática do Jardim Botânico imperial e dos viajantes que frequentavam o parque, mas esquecem que também havia escravos na região.
Em meio aos fatos relembrados, Luciene aborda desde o movimento anarquista, que era muito forte naquela região, a participação dos trabalhadores na Revolta da Vacina, pois “Ela também afetou o Jardim Botânico”.
Luciene conta que o boato de que a aplicação seria nas nádegas das mulheres causou indignação geral e revolta. Vários foram os registros de destruição das ruas, como a retirada dos paralelepípedos que serviam de projetis contra as casas, a derrubada dos combustores de iluminação e a depredação dos bondes da Companhia Carris Jardim Botânico que atendia à população. O periódico Gazeta de Notícias (16/11/1904)informou que a 19ª delegacia, na rua Visconde da Gávea, foi invadida e, parcialmente, destruída. Janelas e móveis ficaram destruídos, além do registro do arrombamento da porta do xadrez, que motivou a fuga dos policiais ali presentes.
A escritora menciona também os trabalhadores infantis que ganhavam a vida no local: “Apesar de proibido, havia muitos menores de 14 anos”. Nem as histórias mais recentes, como a visita do então candidato à presidência Juscelino Kubitsheck, foram deixadas de lado: “Todo mundo vinha em época de eleição”.
O interesse no passado proletariado surgiu aos poucos e quase que por acaso na vida da autora. Moradora do Jardim Botânico desde os quatro anos, o primeiro contato com uma vila operária surgiu quando, ainda na infância, conheceu uma pessoa que vivia na da Carioca América Fabril. “Entrei e vi o pé direito muito alto, tábuas corridas de madeira boa… Aquilo lhe marcou”. Mais tarde, aos 11 anos, teve a oportunidade de visitar outra: “Fui fazer um trabalho escolar em uma enorme na Rua Abreu Fialho, que é uma antiga vila Sauer da Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro. Ali, viviam muitas pessoas e aquilo também ficou na minha cabeça”.
Essas experiências voltaram à tona quando, mais velha, se relacionou com um rapaz cuja família tinha ligações com esse passado operário e italiano, pois foi um bairro de muitos imigrantes. “Minha sogra falava muito das vilas operárias e dos trabalhadores. Ela me mostrou fotos, mas, na época, não dei tanta atenção. Apenas durante meu estágio pós-doutoral no departamento de História da PUC-Rio com o professor Antonio Edmilson Martins Rodrigues, especialista na história do Rio de Janeiro, surgiu a oportunidade de estudar a fundo o passado do bairro, desbravando suas memórias, que vieram a dar origem ao livro”, diz.
Para a pesquisa, que durou 5 anos sem apoio financeiro, Luciene Carris utilizou fontes variadas como antigos documentos, registros de jornais da época abordada, testemunhos de moradores antigos e também as fotos que sua sogra guardava, além de fontes literárias.
“Histórias do Jardim Botânico: Um Recanto Proletário na Zona Sul Carioca” foi lançado pela Editora Telha e pode ser adquirido em seu próprio site, no da Livraria da Travessa e do Amazon. O preço é R$ 59,00.